“Fostering”, ou “família acolhedora”: você já ouviu falar disso?

Faz um tempo que ando dividida entre a resistência em expor uma parte da minha vida que considero privada e a utilidade de falar sobre um assunto que mexe muito comigo e que mudou a minha vida significantemente. Com esse post, está decretada a vitória da última opção. 

No mundo todo, existem situações em que crianças não podem mais ser cuidadas por suas famílias e precisam ser retiradas de casa. Os motivos que levam a isso são muito diversos, mas é bom lembrar que a culpa NUNCA é da criança. Alguns exemplos que constituem a maioria dos casos, aqui no Reino Unido são: mães/pais com problemas de alcoolismo e/ou vícios em outras drogas, com problemas de saúde mental, violência doméstica, agressões, negligência, envolvimento com criminalidade e/ou entrada em sistema prisional, entre outros. 

Quase nunca, ao contrário do que se pensa, essas crianças entram no sistema de adoção imediatamente. Muitas vezes, os problemas são temporários, e busca-se apoiar as famílias para que consigam seus filhos de volta, visando a reintegração. Só quando, e se, todos os recursos forem esgotados é que se considera a possibilidade de adoção. Tudo isso – investigação e avaliação do problema, trabalho com família de origem, avaliação de pais e familiares, das necessidades da criança, etc – leva tempo. E, durante esse tempo, em que o futuro de uma criança vulnerável está sendo decidido, quem cuida dela? 

Existem três opções: ou a criança vai para a casa de parentes (o que nem sempre é possível), ou vai para um abrigo de menores, ou vai para a casa de alguma família que se disponha a acolhê-la. São as “foster families”, em inglês. Em português, o nome às vezes muda, mas vi que em alguns estados do Brasil se chama “família acolhedora”. São famílias que se comprometem a cuidar dessas crianças temporariamente, trabalhando junto com o serviço social e com outros profissionais para que as melhores decisões sejam tomadas. 

Eu abri meus olhos para esse mundo do “fostering” quando uma amiga próxima, escocesa, me contou que estava se inscrevendo no programa, porque era algo que ela sempre teve vontade de fazer mas só agora se sentia preparada, emocional e materialmente. Fiz muitas perguntas, achei lindo e inspirador, pesquisei no Google, li histórias comoventes, e li também histórias que me contorceram o estômago e me assombraram por dias (ainda existe muita crueldade no mundo…). São crianças que chegam em uma casa estranha carregando bagagens pesadas, cheias de traumas, medos e sofrimentos. Que precisam deixar pra trás tudo que conhecem e ir morar com desconhecidos que, apesar de bem-intencionados, nem sempre conseguem ajudá-las a ter uma infância o mais normal e tranquila possível, apesar de tudo que elas possam ter passado. Meus olhos, ao se abrirem para tudo isso, também se encheram de ciscos… 

Acompanhei a trajetória dessa minha amiga de perto, com curioso entusiasmo. Ela me contava como era o processo, como estavam sendo os treinamentos, e como eram definidas as combinações de criança-família, que devem ser criteriosas. Por exemplo, ela tem filhos pequenos, e animais de estimação, então não poderia abrigar uma criança que tivesse um histórico de agressão a outras crianças ou animais, por ex. Ela disse que gostaria de acolher uma menina, adolescente, porque teria necessidades diferentes das dos filhos dela, e seria um outro tipo de atenção que ela estava ansiosa para prover. 

Mas, como o fostering é uma caixinha de surpresas, e a gente aprende que tem que estar pronto para tudo, ela se viu abrindo a porta da casa – e do coração –  para um menino de 10 anos de idade. E eu não vou, aqui, dar detalhes dos motivos que o levaram a entrar no sistema, porque não importam (e porque devo resguardar informações assim). Mas, no decorrer de um ano, eu vi aquela criança se transformar muito positivamente. Vi minha amiga persistir e superar desafios que talvez tivessem feito outros desistirem. Testemunhei o poder de cura que um lar seguro e estável, uma educação consistente, e muito afeto e compreensão podem ter em uma jovem vida. Naquele verão, sentadas em um banco, vendo as crianças correrem juntas, praia afora, ela me disse que vê-lo assim, tão mais feliz, seguro, e tranquilo do que era antes fazia com que todas as dificuldades valessem a pena, que era muito recompensador. Comentei que admirava imensamente o que ela estava fazendo, e que tinha vontade de fazer isso também, um dia…

“Por que não agora?”, ela me perguntou. “Eu acho que você seria uma “foster mom” excelente, e precisam tanto de mais famílias!”

Na hora, minhas inseguranças responderam por mim mas, em casa, a pergunta ficou ecoando na minha cabeça: “Por que não agora?”. Temos um quarto vago, em casa, e minha vida já é mesmo toda estruturada de modo a me permitir cuidar do Pedro, com um trabalho flexível.  Pensei que todas as atividades que fazemos com ele, todos os passeios e brincadeiras, podiam também estar sendo desfrutados por outra criança. E ele com certeza iria amar a companhia. Pensei também no quanto uma experiência de fostering seria enriquecedora para ele, fazendo com que tivesse ciência de outras realidades. Essa sementinha foi brotando, regada por meses de leituras sobre o assunto, incluindo livros escritos por pessoas que já fizeram o mesmo – geralmente, deixam passar uns anos antes de contar todas as histórias, sob pseudônimo e preservando as identidades das crianças. E, depois de muita conversa em família, para ter certeza de que todos estávamos de acordo, nos inscrevemos. 

O processo de avaliação é bastante longo e rigoroso, semelhante ao de adoção. São meses de entrevistas com assistentes sociais, que pedem mil documentos, referências, e investigam toda a sua vida. Também tivemos que passar por alguns treinamentos obrigatórios. Lembro de um, logo no início, com mais pessoas que haviam acabado de se inscrever, em que a assistente social passou duas horas contando as piores histórias de fostering da carreira dela. Acho que era mesmo para impactar, dar um choque de realidade e ver quem continuaria querendo passar pelo processo, depois disso! 

Eu sentia que as experiências dos outros e tudo que eu havia aprendido nas minhas leituras poderiam me ajudar muito em diversas situações, mas uma coisa ainda me deixava com o pé atrás: a hora de dizer “adeus” a uma criança. Para mim, o apego é inevitável e, sinceramente, desejável, porque essas crianças precisam sim que a gente se apegue a elas como se fossem nossas. Eu pensava no quanto seria difícil se tivesse que vê-las indo embora. Porque, quando a gente abre essa porta do fostering, não sabe o que vai estar do outro lado. Algumas crianças vão precisar ficar só uns dias, outras vão precisar de meses, e algumas ficam anos ou mesmo para sempre. Eu li histórias de famílias que cuidaram de uma criança desde bebê e que, anos depois, tiveram que devolvê-la para a família de origem, sem ter mais nenhum contato com a criança. Descobri que esse é um luto pouco conhecido, pouco compreendido e pouco discutido, e que faz muita gente desistir de seguir nesse caminho. 

Um dia, conversei sobre isso com a assistente social. Disse a ela que eu ainda não tinha certeza se eu servia mesmo para isso, porque ficava imaginando como seria ter que me despedir de uma criança de quem cuidei como se fosse minha, e que achava que isso seria doloroso demais, caso acontecesse. O que ela respondeu me atingiu feito um raio:

“Com certeza, é muito difícil. Mas você precisa lembrar, Anelise, que não importa o quão difícil isso ou qualquer outro aspecto do fostering seja para você: o seu sofrimento nunca vai ser comparável ao que essas crianças já tiveram que passar, a todas as perdas, traumas e sofrimento que elas tiveram, em tão pouca idade.” 

Boom! Me coloquei instantaneamente no meu lugar. Pensei: sou adulta, tenho casa, família, segurança e poder decisório sobre meu próprio futuro, coisas que essas crianças não têm. Então, se chegar um momento assim, vou lidar com minha dor e juntar os meus cacos, mas não é justo privá-las de um lar só porque, talvez, no futuro, eu possa sofrer. O pé atrás pulou rápido para a frente, envergonhado da sua posição anterior. 

E eis que, enfim, chegou o dia em que passamos pela avaliação de uma banca que nos aprovou como “foster carers”. A partir desse dia, sabíamos que, a qualquer momento, o telefone poderia tocar, e poderia ser a assistente social, nos passando o perfil de alguma criança. Confesso que essa é a parte que eu mais gosto, a da surpresa! Mas o frio na barriga também aumentava a cada dia, quando eu pensava nas mudanças que isso causaria nas nossas vidas, e no trabalho de cuidar de mais uma criança que, provavelmente, precisaria de muita atenção. Mas, afinal, quem já cuida de uma consegue cuidar de duas, certo?! Ou de quatro, de repente…? Mas isso já é um “spoiler” do resto da história, que vou contar em um próximo post. 

Para saber mais: 

No Brasil: https://familiaacolhedora.org.br

No Reino Unido: https://www.gov.uk/becoming-foster-parent

(Todos os países possuem um programa semelhante, então é só pesquisar, caso você tenha se interessado mas não esteja nem no Brasil nem no Reino Unido)

Filme: “De repente uma familia” – “Instant Family”, de 2018. É um filme sobre fostering que adorei, e é inspirado em uma história real. Leve, mas retrata bem alguns desafios e várias das emoções que geralmente estão presentes. 

PS: É indiscutível que o nível de cuidado e atenção que uma criança recebe em uma casa de família, quando amorosa e competente (porque, infelizmente, existem exceções), é muito superior ao de um abrigo. Mas a maioria de nós nunca parou para pensar muito nisso ou nunca ficou sabendo que existe essa possibilidade de prover um lar temporário para crianças que precisam. E, assim, faltam famílias acolhedoras no mundo inteiro. Aqui, no Reino Unido, existe um déficit de mais de 9.000 famílias. No Brasil, apenas 5% das crianças que são retiradas de casa estão em famílias acolhedoras. O resto está em abrigo, sem cuidados e atenção individuais que são tão importantes na infância! São dados que me cortam o coração.

Falar sobre isso, para mim, é uma forma de divulgar essa possibilidade. Assim como eu resolvi trilhar esse caminho inspirada na experiência da minha amiga e de tantas outras pessoas, pode ser que esse post inspire alguém a buscar mais informações. 

Fostering, definitivamente, não é para todos mas, se quase ninguém souber que isso existe, menos pessoas ainda vão considerar essa jornada.

PPS: Esse post não abrange, nem de longe, todos os detalhes e debates que envolvem o tema, que é bastante complexo e cheio de problemas. 

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  1. Luana Cristina

    Quanto amor, afeto e cuidado nas suas palavras Anelise.
    Gratidão por compartilhar esse momento da sua vida.

  2. Que linda essa escolha. Infelizmente materialmente ainda não estou preparada pra receber outra criança do ponto de vista do governo aqui. Mas eu também tenho muita vontade. Convivo de perto na escola com várias crianças que passam por essa realidade. Esperando o próximo post e obrigada por mais uma vez trazer uma inspiração incrível

    • Anelise

      Obrigada por ler e comentar, Erinice!! Realmente, é o tipo de coisa que só dá pra fazer se a pessoa estiver na fase de vida certa, com as condições certas, enfim, o tempo tem que estar muito certo mesmo, porque não é fácil. Um dia, talvez, dê certo pra você! Beijos!

  3. Daiane Léo Motta

    Que atitude mais linda! Parabéns pra você Anelise e aos envolvidos.

  4. Simone Gonçalves.

    Que post lindo, sensível e delicado sobre um assunto tão sério, e pouco falado. Obrigada por compartilhar. Realmente, jamais teremos noção do que é estar na pele dessas crianças. Que sejam felizes, e bem sucedidos nessa linda jornada. Ansiosa pela continuação…amei o possível spoiler!!❤️

  5. Nany Camatta

    Anelise, que fantástico a leitura .

  6. Daniela

    Nossa que clareza na sua escrita, que por sinal escreve muito bem.
    Adorei seu relato, que trabalho lindo com estas crianças que sofrem em um local que deveria ser um lar acolhedor mas que ao contrário disso lhe trazem muitas tristezas e traumas.

  7. Francisca Clea Pereira Nava

    Ansiosa pelo novo post!
    Saver das expectativas da criança e sua tb.O qto de enriquecimento essa experiência te trouxe, afinal esse é um ato de amor.
    Bjs

  8. Juliana Gimenez

    Que lindo, não conhecia o projeto no Brasil, desde muito nova sempre quis adotar mas essa modalidade parece ser melhor porque da oportunidade de várias crianças serem amadas e ajudadas ❤️

    • Anelise

      Eu também sempre quis adotar, mas hoje percebo o fostering como mais urgente. Existem mais famílias querendo adotar do que querendo fazer isso, e as crianças maiores, ou as que não podem ser adotadas, acabam privadas de um lar amoroso, de um cuidado que pode mudar a vida delas. Sem contar que muitas crianças acabam ficando para sempre, e terminam sendo adotadas pelas famílias que as acolheram, também.

  9. Paloma Casali

    Você é sempre um exemplo!

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