Honestidade: no Brasil, na Escócia, na vida.

Eu cresci no Brasil, acostumada a ver as pessoas reclamando da corrupção, da bagunça, de como nada funciona. Acostumada, como a maioria, com o “jeitinho”, com a malandragem, com o “rouba mas faz”, com o “achado não é roubado”. “O mundo é dos espertos”, e os honestos, por consequência, são os trouxas que nunca que são bem.

Felizmente, como muitos de nós, fui educada para fazer diferente. Minha mãe costuma dizer que não existe meia honestidade; ou se é inteiramente honesto, inclusive nas pequenas coisas, ou não se é. Fui ensinada a devolver o troco errado, a tentar encontrar o dono da carteira perdida, e a pagar cada centavo que devo. Mas também fui ensinada a “não dar bobeira” e a “ficar esperta”, pra não “cair no conto do vigário”.

Uma vez encontrei um celular, no banheiro de um shopping. Esperei um tempo pra ver se alguém voltava com cara de que estava procurando um celular, mas nada. Como ele não tinha senha, fui até a agenda e achei um contato salvo como “pai”. Liguei e expliquei que tinha encontrado um celular, assim e assado, mas ele levou um tempo pra entender direito, pareceu desconfiado. No final, entreguei o celular para a dona dele, que me disse que já tinha tomado como perdido. Quando eu perdi o meu, ninguém achou e me devolveu. Lógico, afinal, “achado não é roubado”… E todos temos zilhões de exemplos assim, onde mesmo quando nadamos contra a corrente, nunca esperamos que ela vire a nosso favor.

Então, acostumada assim, foi inevitável que aqui na Escócia eu me surpreendesse com a honestidade das pessoas. É óbvio que existem crimes aqui, que existem roubos, que existem pessoas desonestas. Mas esses comportamentos são vistos com uma indignação imensa, ao invés de serem esperados. De modo geral, e principalmente fora do eixo Glasgow-Edimburgo, as pessoas seguem uma regra muito simples de civilidade: “se não é seu, não pegue!”

Uma vez eu esqueci meu celular, novinho em folha, no gramado do jardim da frente (eu estava batendo foto das flores, aí o filho chamou, enfim, confusões!). Me dei conta disso quando estava dentro do trem, a caminho de Edimburgo. “Perdeu, malandro…”, pensei. “Nunca mais vou ver meu celular”. Estava muito ali, exposto, de presente pra quem o quisesse. Quando cheguei em casa, percebi que, realmente, o celular não estava mais lá. Conformada, fui abrir a porta, e aí meu filho reparou e apontou: meu celular estava no beiral da janela da frente. Alguém entrou no meu jardim, juntou o celular do gramado e o colocou no beiral da janela, imagino que tanto para que ficasse mais fácil de eu encontrar quanto para evitar que estragasse caso chovesse. E ali ele ficou, o dia inteiro, e ninguém pegou. Meu queixo, brasileiro, caiu.

Outra vez, recebi uma ligação da empresa de celular, me informando que eu estava usando menos dados do que os que estavam no meu pacote e perguntando se eu não queria, por isso, trocar para um plano mais barato. A cabeça, brasileira, quase fundiu ao constatar que eles estavam perdendo o tempo deles para me ligar e me convencer a pagar menos dinheiro pra eles.

E o dia, em que cheguei no mecânico apavorada porque o meu carro ia explodir a qualquer momento! Falei para ele que eu não fazia ideia do que poderia ser, que tinha barulhos esquisitos e que eu nem tinha mais coragem de dirigi-lo porque não queria morrer. Descumpri uma regra básica de sobrevivência no Brasil: confessei para o mecânico toda a minha ignorância. Se ele tivesse me dito que era um grave problema na rebimboca da parafuseta, que eu teria que trocar toda a fuselagem e que custaria duas vezes o valor do carro, eu acreditaria. Mas ele me disse que era só um ajuste não-sei-onde, que levou dois minutos para fazer e que ele nem ia me cobrar nada.

E assim, aos poucos, eu fui me acostumando com isso e ficando menos espantada. É tão mais fácil nadar quando a maré está favorável! É bom estar em um lugar onde a honestidade não é “a virtude do trouxa”, e onde seguir as regras é, de fato, a regra, e não a exceção. É bom poder ensinar meu filho a ser correto sem que eu tenha que explicar pra ele porque as pessoas ao redor também não são.

Mas hoje, eu me deparei, pela primeira vez, com um pequeno ato de “desonestidade” por aqui. Fui pegar o ônibus com ele, que tem 6 anos. Aqui, crianças até os 5 anos de idade não pagam, então já separei o dinheiro para duas passagens. Quando entramos no ônibus, entreguei o dinheiro para o motorista, um senhor de cabelo todo branco, barba, olhar bondoso. Ele olhou para o Pedro, sorrindo, e perguntou quantos anos ele tinha. “Seis”, respondi. Ele me devolveu o dinheiro da passagem dele e disse “Vamos fingir que ele tem cinco”. Fiquei um momento meio paralisada, pela surpresa e por não saber como reagir. “Tem certeza?”, perguntei, estendendo de novo o dinheiro. “Aye!”, ele respondeu, fazendo um gesto com a mão para que eu não me preocupasse. Sentamos e, em seguida, o Pedro me falou “Mãe, mas eu tenho seis anos”. “Eu sei, Pedro, mas é que o motorista quis ser querido conosco e não cobrou a sua passagem, por isso ele falou pra fingir que você tem cinco anos”. Ele olhou pra fora e disse “Isso não faz sentido, eu tenho seis, por que eu iria querer ter cinco anos de novo?”. Vale dizer que ele tem muito orgulho de já ter seis anos. Mudamos de assunto, mas eu segui pensando — e pesando — o ocorrido.

Imagino que as pessoas no Brasil (e eu, inclusive!) devam estar pensando: “Ah, Anelise, quanta besteira esquentar a cabeça com isso, deixa pra lá, que bom que ele não cobrou, foi gentil!”. E sim, concordo. Mas, ao mesmo tempo, senti um pequeno mal-estar, que a princípio não compreendi mas depois pensei que pode ser um sinal de que talvez esse tempo aqui tenha me deixado muito rigorosa com regras. Lembrei das vezes em que o Pedro ganhou coisas de lugares em que fomos, como pirulitos e balões que as pessoas deram pra ele de presente. Não cobrar a passagem dele seria possivelmente equivalente a isso?

A gentileza é uma virtude maior que a honestidade? No livro Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda lançou a tese de que o brasileiro é o “homem cordial”. Será que essa índole cordial sistêmica é culpada por não termos um país rigorosamente honesto? Será que minha mãe está errada, e que a honestidade pode sim ter um valor elástico, dependendo das circunstâncias, principalmente quando se tratam de valores cordiais? E quem define essas circunstâncias? Mas Robin Hood, o herói que roubava dos ricos para dar aos pobres, é um personagem daqui, do Reino Unido, um povo “não-cordial”, aos olhos do Sérgio. Será que ele não poderia ter ajudado os pobres sem precisar roubar? E, afinal, onde fica a rebimboca da parafuseta?

Anteriores

Sobre um nome difícil no Brasil e um nome brasileiro na Escócia:

Próximo

Fantasmas do Castelo de Edimburgo: The Lone Piper

  1. Rafaela costa custodio

    para refletir….

  2. Lucimara

    Nossa!!!! Apesar desta pequena “cordialidade” temos realmente que nos surpreender com todo esse sistema que funciona nesses países. Eu gostaria muito de viver tudo isso. Amo a Escócia. Falo mil vezes se precisar.

  3. Adriana

    Amo seus textos, Anelise!
    Obrigada por compartilhar histórias que nos fazem sonhar!

  4. Edison Henrique Lamas

    Anelise. Ótimo trabalho que você faz. Conversamos a algum tempo. Um grande amigo e colega de trabalho se aposentou e está radicado na Inglaterra já devidamente legalizado. Está em Birmingham. Me convidou para ir morar com ele. Em seis meses devo estar viajando. Ótimo site. Obrigado. Um abraço.

  5. Edison Henrique Lamas

    Obrigado Anelise. Tudo de bom para você. Um abraço.

  6. Daniel Alves

    Falando a verdade, pelo menos a minha verdade… Tudo isso é muito lindo. What a wonderful world.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Desenvolvido em WordPress & Tema por Anders Norén

You cannot copy content of this page