Uma das perguntas que eu nunca soube responder, sobre a vida na Escócia, é sobre opções de exercícios físicos. As pessoas querem saber se aqui existe academia, aula de zumba, natação, spinning, quanto custa, como funciona, etcs. Só que eu moro em um vilarejo de mil habitantes que não tem nem mercado, então sempre respondo, brincando, que minhas únicas opções, por aqui, são nadar no mar ou arremessar troncos, no melhor estilo Highlander Games. Eu adoro nadar, mas guardo a minha coragem de entrar na água congelante para o Hogmanay. E arremessar troncos não faz bem o meu estilo.
Nunca fui muito atleta, mas sempre estive em movimento. No Brasil, eu geralmente alternava entre natação, musculação e yoga (o favorito!). Mas a atividade que mais me exigiu, fisicamente, foi escalada. Uma vez, no meio de um paredão, debaixo de um sol escaldante, meus músculos travaram. Eu não conseguia mais subir. Quando tentava, as pernas tremiam e não obedeciam. Fiquei ali, abraçada na rocha, imóvel. O instrutor me incentivava a continuar tentando mas não deu, era meu limite, meu corpo não seguia meus comandos. Ele teve que descer para me desgrudar dali (e me mandar comer mais potássio). Não duraram muito, minhas aventuras escaladoras, mas aquela sensação de esgotamento total ficou na memória.
Enfim, segui a vida de modo mais light. E, recentemente, para sair do sedentarismo dessa vida no norte, voltei a fazer caminhadas. O bom de caminhar, aqui, é que você se sente completamente livre pra ir onde quiser, sem medo de nada. Pego meu celular, coloco minhas músicas e saio. Corro pela praia, pelas trilhas da costa, subo até o farol, contorno o penhasco. Onde der vontade, eu vou, eu posso ir, é seguro. E é lindo! Liberdade! Natureza!
Mas, um dia, uma das mães da escola (estou nessa fase da vida em que meu círculo social se resume, basicamente, a “mães da escola”) me contou de um tal de beach fitness, que acontecia algumas vezes por semana, na praia. Segundo informações, era um ex-militar que passava exercícios e todo mundo podia participar, era só aparecer e pagar 3 libras. Combinamos de ir juntas na próxima, para ver como era, e fiquei super animada com essa opção de exercício. Quem diria, minha village não é tão fim de mundo assim, afinal, tem até beach fitness!
Quando chegou o dia, estava chovendo. Enviei mensagem para a minha amiga, perguntando se teria a aula mesmo assim, já que era ao ar livre. “Ele não se importa”, ela me disse, “é militar”. Ok, pensei, e como quem está na Escócia é para se molhar, lá fomos. Havia umas 7 pessoas, no local, e não precisei queimar muitos neurônios para adivinhar quem era o tal militar: um sujeito virado em músculos, com calças camufladas, coturnos, e um jaquetão onde se lia, em letras garrafais, “ROYAL MARINERS COMMANDER”. Meu pensamento alternou entre “Wow, super cool!” e “What the hell?!”. Ele parecia legal mas, dois minutos depois, perguntou se estavam todos prontos pra começar e, quando respondemos que sim, ele GRITOU: “CORRAM!!!” E os “veteranos” correram, e eu corri atrás.
E, de repente, me vi em meio a um circuito maluco onde não podíamos parar de correr, e tínhamos que alternar a corrida com exercícios de nomes desconhecidos para mim, tipo lunges, squat thrusts, burpees e etcs. Ele ia gritando os nomes dos exercícios e a gente tinha que ir fazendo, até ele gritar nova ordem. Eu nunca vi nada igual, deve ser alguma técnica de treinamento de guerra, porque o cara só sabia falar gritando, e a gente só sabia obedecer cegamente, quase respondendo “yes, sir”. A chuva continuou, e ele continuou não se importando, nos fazendo deitar na areia molhada pra fazer abdominais, com chuva na cara mesmo. De repente veio uma pausa, e fomos autorizados a tomar uma água (eu já havia tomado durante o abdominal, aliás) mas não podíamos parar de correr, tínhamos que ficar correndo sem sair do lugar, sob risco de penalidade. Uma das mulheres, em uma das pausas, esqueceu e ficou parada, olhando o mar por uns segundos, certamente traçando mentalmente uma rota de fuga. Teve que pagar 20 flexões. E ele falava (ou melhor, gritava) coisas como “preciso voltar para o acampamento ainda hoje, andem logo!!!”, e também algo sobre uma base que tem aqui perto, o que me fez concluir que está na ativa. Tivemos que levantar sacos de 10 kgs, girando e erguendo pro alto, enquanto corríamos. Nunca senti tanta falta de ar na minha vida. Fiquei calculando em quanto tempo uma ambulância chegaria, caso alguém (eu) caísse duro no chão (não tem hospital por perto). Mas, depois de uma hora, me dei conta que havia corrido aquele tempo todo. Justo eu, que quando tentava alternar corrida nas minhas caminhadas, parava depois de 2 minutos. Uau! Os gritos funcionam!!
A dor, no dia seguinte, foi intensa. Tudo doía, e eu não conseguia dobrar as minhas pernas nem descer as escadas de casa. Passei dois dias me movimentando de modo ridículo, e gemendo pelos cantos. Jurei para mim mesma que jamais voltaria naquele exagero de aula. Minha amiga também estava arrependida e fez o mesmo juramento, enquanto se cobria com sacos de ervilhas congeladas.
Mas, por motivos que apenas a psicologia humana compreende, fomos na aula seguinte. Chegamos cedo, e aproveitei para perguntar para aquele povo, de feições antecipadamente sofridas, qual era mesmo o nome do nosso torturador. “Kaz”, me responderam. “Claro”, pensei. Pessoas poderosas nunca têm mais que 3 letras no nome: J Lo, Kim, Kaz. Logo ele chegou, e depois de 5 segundos de um sorriso simpático para nos cumprimentar, começou a gritar. E nós, a correr. Corridas com movimentos, corridas com sacos, corridas com pulos, corridas com metralhadoras…. (Não. Estou brincando. Foi sem metralhadoras, porque seria muito perigoso no estado mental em que estávamos). Uma hora ele estava explicando uma série de exercícios que teríamos que fazer, enquanto todos escutavam correndo sem sair do lugar, parecendo um bando de insanos. Uma parte do exercício consistia em se deitar completamente no chão, com braços espalmados e rosto grudado na areia. “Alguma pergunta?”, Kaz gritou. Eu, sem pensar, respondi: “Sim. Quantos minutos podemos ficar naquela posição deitada? Ela parece ótima!”. Kaz ergueu um cantinho da boca, em um risinho torto, e depois gritou “RUUUNNN!!”. Comecei a achar que talvez ele tenha traumas de guerra. Em outro momento, estávamos quase morrendo, e portanto indo devagar demais pro gosto dele, e então ele perguntou “E essa moleza toda, o que foi?? Querem uma música, por acaso??”. Pensei em pedir o “Despacito”, mas já havia aprendido a não ser mais engraçadinha. Não queria pagar em flexões. Se Kaz fosse meu instrutor de escalada, eu teria subido aquele paredão assoviando e carregando um saco de 15 kgs nas costas. Tenho certeza.
Pelo menos não estava chovendo, dessa vez. Mas – há! – havia midges. Aqueles. Os terríveis. O terror da Escócia. Os midges são uns mosquitinhos tão pequenos que é impossível lutar contra eles. Eles picam entre os cílios, no interior da boca, orelha, por tudo. Eu devo ter comido uns 30 midges e respirado outros 20. Um dos homens comentou, enquanto os comia, que é por causa deles que o norte da Escócia é tão desabitado. Ele tem razão. Eu preferia a chuva.
Voltamos para casa com apenas uma frase na cabeça: So. Much. Suffering!! Fazendo novos juramentos de nunca mais ir. Dessa vez, foi pior. Foram 4 dias de dores nas pernas, fora as picadas dos midges.
Aposto que, da próxima vez, vai ser pior ainda. Vai ter midges. E chuva. E Kaz vai estar bêbado. E vai nos fazer arremessar troncos enquanto nadamos no Mar do Norte. Ou algo assim. Não estou nada otimista. Mas adivinhem quem vai de novo??
Helen Lemos
Adorei tua historia! Continue firme! Quem sabe esse cara ta treinando vcs pra alguma missão!!! Hahaha…obrigada por avisar dos mosquitos. Vou levar repelente para a viagem…hehehe espero que funcione.
Anelise
Hahahaha, obrigada!! Sigo firme!!! Os midges atacam só no verão, e quando não tem vento. Espero que você não tenha o azar de encontrá-los por aqui! 😉
Nilva
Adorei seu modo de escrever e dei boas risadas. Continue firme : com os exercícios e escrevendo.
Anelise
Obrigada, Nilva!!! 😀
Henrique Manograsso
Conto interessante
Criativo , dinâmico
Bem escrito
Leve suspense
Xica
hehehe adorei o relato e ri mto com ele!
“No fim do mundo tem Beach fitness” heehe… eu queria morar em um fim de mundo lindo assim haha
Onde eu moro é fim de mundo mesmo, já desisti de sair pra caminhar faz tempo pq sempre é o mesmo caminho e, triste, é ponto de abandono de animais, então sempre tem algum cachorro/gato atropelado ou no meio da rua e eu fico mto mal com isso, então prefiro nem ver 🙁
Aqui no meu fim de mundo rs, tem bichinhos parecidos com esses aí, os maruins. Uma peste, pequenos, quase não dá pra ver, mas deixam um bom estrago na pele, coça mto!
Isso aí, força nos exercícios! Logo logo vão estar arremessando troncos enquanto fazem burpees e tudo isso na maior tranquilidade rs
Naiara
Céus! Como é bom histórias que te fazem sorrir! Um achado fantástico!
Estava pesquisando sobre a Escócia, visitarei em Fevereiro e encontrei vocês, amei! Que delícia!
Parabéns!
Anelise
Oi Naiara!! Obrigada!! Fico feliz!! 😀