O “monstro” do Lago Ness – pequeno guia básico

Milhares de turistas visitam a Escócia todos os anos, e grande parte deles faz questão de ir até o Lago Ness para, quem sabe, avistar algo suspeito nadando em suas águas. Anualmente, são computados centenas de novos avistamentos. Muitos deles são facilmente identificáveis como sendo focas, troncos ou ondas – as águas do Ness possuem uma corrente interna que às vezes se move na direção contrária da externa, criando uma ilusão de ótica bastante convincente de “corcundas”. Mas muitos outros ficam sem explicação.

Os avistamentos mais convincentes costumam aparecer nos jornais daqui. Lembro de ter achado graça de um relato que li, de um sujeito que trabalha em uma destilaria de whisky ali perto e, quando estava voltando para casa, diz ter visto o monstro e bateu uma foto estranha de movimento nas águas. Lembrei, na hora, do guia da excursão que fiz a primeira vez que fui ao Lago Ness, e da resposta que ele me deu quando perguntei o que ele achava da lenda: “Bem, muita gente de confiança relata ter visto algo estranho….mas, você sabe, gente de confiança também bebe whisky….”

Aliás, para os escoceses, não existe um “monstro” no Lago Ness, e sim uma “monstra”, carinhosamente apelidada de Nessie. Meu filho, aos 4 anos, aprendeu na pré-escola do nosso vilarejo que Nessie é muito tímida, e por isso se esconde das pessoas. As professoras mostraram fotos e contaram histórias dos avistamentos mais famosos. Nessie é tão popular que já virou protagonista de filmes, livros, e até de um curta metragem da Disney intitulado “A Balada de Nessie”:

O início da lenda data do século XI, quando São Columba relatou ter salvo um morador local do monstro, ordenando que ele voltasse às profundezas do Ness.

São Columba, às margens do Ness, mandando Nessie embora (que malvadão….)

Mas o primeiro relato autenticado de avistamento oficial é de 1880. Um mergulhador profissional foi contratado por uma seguradora para localizar um barco que havia naufragado no lago, e relatou ter visto uma criatura gigante que se assemelhava a um réptil marinho. Ele voltou à superfície branco e apavorado, segundo contam, e ficou tão assustado que se recusou a continuar o trabalho e nunca mais mergulhou em lugar algum.

Outro relato famoso foi o de um casal inglês que estava a passeio, no verão, e diz ter visto ‘a most extraordinary form of animal’ atravessar a rua e entrar no lago. Eles descreveram a criatura como tendo cerca de 1.2m de altura, 7 ou 8 metros de comprimento e com um pescoço longo e fino, com ondulações. A história foi parar nos jornais de Londres, fazendo com que muitas pessoas corressem para o Ness, na tentativa de também conseguir ver a tal criatura. No mesmo ano, um motociclista chamado Arthur Grant disse ter quase atropelado um animal enorme, com um pescoço longo e ondulado e uma cabeça pequena. Era de madrugada mas a luz da lua permitiu que ele visse a criatura sumindo no lago. Grant estudava veterinária, e descreveu o animal como sendo uma mistura de foca com plesiossauro.

Plesiossauros

A foto mais famosa de Nessie lembra um plesiossauro. Conhecida como “foto do cirurgião”, ela foi tirada em 1934 por um médico inglês, e publicada com furor pelo Daily Mail em 21 de abril do mesmo ano. O tal médico , Robert Wilson, não quis ter seu nome associado à foto (por isso a “foto do cirurgião”) mas relatou que estava olhando para o lago quando viu a criatura, e que rapidamente tirou quatro fotos. A que ficou famosa é mais nítida delas:

Foto do cirurgião, de 1934.

Por 60 anos, esta foto foi considerada evidência da existência do monstro, apesar de os céticos afirmarem que poderia ser um tronco, um elefante (! – os céticos às vezes me espantam com tanta criatividade alternativa), uma lontra ou um pássaro. Só em 1994 a fraude veio à tona, após um dos participantes da produção da imagem ter confessado a história, aos 90 anos de idade. Ele contou que Marmaduke Wetherel, um produtor que havia sido ridicularizado pelo Daily Mail por ter encontrado pegadas falsas do monstro quis se vingar e, com a ajuda de amigos, usou um submarino de brinquedo do sobrinho, com um pescoço e cabeça esculpidos por um outro amigo. Surgiu então a famosa foto, que foi então vendida para o Daily Mail como sendo verdadeira.

A foto foi desmentida mas a ideia de que Nessie possa ser um plesiossauro persistiu, e passou a ser reforçada por outros relatos que descreviam uma criatura similar. Os avistamentos ao longo dos anos não seriam – obviamente – de um mesmo monstro, mas dos descendentes do monstro original. Eles teriam escapado da extinção dos dinossauros por serem animais de águas muito profundas. Esse seria também o motivo de os avistamentos serem raros, pois eles viveriam escondidos em profundidades abissais.

Em 1971, o Dr. Robert Rines, presidente da Academia de Ciências Aplicadas de Boston, estava a passeio com a esposa nas margens do Ness quando ambos viram algo estranho se mover pelo lago. A experiência o intrigou de tal jeito que ele voltou à Escócia diversas vezes nos anos seguintes, em busca de Nessie, arriscando com isso sua reputação científica e sendo exposto ao ridículo pelos colegas céticos. Seu objetivo era obter provas da existência de uma criatura desconhecida no lago, e algumas das fotos que ele tirou, ao longo de 35 anos de expedições ao Loch, e com a ajuda de sofisticados equipamentos fotográficos e um sonar, intrigam muitos até hoje:

Foto tirada pelo Dr. Rines, supostamente mostrando uma criatura parecida com um plesiossasauro.
Foto tirada com a ajuda de um sonar. O Dr. Rine acredita que seja uma nadadeira – barbatana – do monstro.

Em 1987, foi organizada uma grande pesquisa chamada Operation Deepscan. Vinte e quatro barcos, equipados com equipamentos de sonares, fizeram uma varredura pelo Ness, enviando ondas acústicas até o fundo. No primeiro dia, os cientistas encontraram três objetos estranhos não-identificados, um deles se movendo a uma profundidade de 180 metros. Eles acompanharam esse objeto por cerca de dois minutos, e então ele se moveu para fora do sonar. Todos os três objetos eram maiores que um tubarão mas menores que uma baleia, segundo dados dos sonares. No segundo dia, retomaram a varredura de onde pararam no dia anterior, mas não encontraram nada diferente. Eles voltaram e reescanearam as mesmas áreas onde haviam encontrado os objetos suspeitos, mas não encontraram mais nada.

Operation Deep Scan

Estima-se que a operação tenha cobrido 60% da área do Lago (a parte mais profunda), ao longo de dois dias. As pessoas tentam explicar esses três objetos, mas não existem certezas. Alguns acreditam que poderiam ser focas gigantes que teriam entrado no lago através do Canal. O Lago Ness possui ligação com o mar e com outros lagos próximos, pois faz parte do Caledonian Canal, que liga a costa oeste com a leste em uma rede de canais que vão de Fort William a Inverness. Alguns pesquisadores também acham que parte dos avistamentos podem ser salmões gigantes que sobem o Ness para desovar e depois retornam para o mar.

Em 2016, o fotógrafo amador Ian Bremner tirou uma foto considerada, por alguns, como uma das melhores fotos de Nessie até hoje e, por outros, como três focas brincando na água:

Foto de Ian Bremner

Em 2012, o capitão de um barco que leva turistas em passeio pelo Ness fotografou uma corcunda na água. Ele relatou que a corcunda ficou visível por 5 ou 10 minutos, e que foi a primeira vez que viu algo assim no Lago, apesar de passar cerca de 60hs por semana navegando por ali.

Foto tirada pelo capitão do barco “Nessie Hunter IV”.

O naturalista, biólogo marinho e pequisador Adrian Shine, organizador da Operation Deep Scan e diretor do Projeto Loch Ness & Morar mora às margens do Loch Ness desde os anos 70, e dedicou sua vida a solucionar o mistério. Ele é autor de vários livros sobre o assunto, e acredita que o “monstro” possa ser um esturjão do Atlântico, que atingiria um tamanho de até 4 metros de comprimento e poderia, ocasionalmente, vir parar no Ness através dos canais. Mas nem mesmo ele, a maior autoridade sobre vida no Ness, se arrisca a palpitar sobre os objetos detectados pela Operação Deep Scan, pois eram maiores e estavam a uma profundidade superior à da maioria dos habitantes usuais do lago.

Adrian Shine, nos anos 70, sempre à beira do Lago, em busca de Nessie.
Adrian Shine, nos anos 80.
Adrian Shine, atualmente. Ídolo!

Em 2018, um time internacional de pesquisadores de Universidades da Dinamarca, da Nova Zelândia, da Inglaterra e da Escócia coletou amostras de eDNA do Lago Ness, com a ajuda de Adrian Shine (of course!). O resultado da pesquisa foi aguardado ansiosamente e finalmente divulgado este ano, em 5 de setembro de 2019. A análise das amostras revelou a presença de material genético de cerca de 3.000 espécies diferentes no Loch Ness, incluindo a de porcos, cervos, pássaros, e até cachorros e humanos, mostrando que a pesquisa é sensível o bastante para decetar a presença de espécies que apenas ocasionalmente visitam as águas. Os resultados foram comemorados pelos céticos e divulgados como sendo a prova cabal de que não existe nenhum monstro no lago, pois não foi detectado nenhum vestígio genético de plesiossauros ou de qualquer espécie reptiliana. O DNA mais frequente foi o de enguias, o que levou a uma nova teoria de que Nessie possa ser, no fim das contas, uma enguia gigante.

Infográfico dos resultados da pesquisa de eDNA.

Só que a pesquisa também não detectou nenhuma amostra de DNA de focas e lontras, duas espécies que ocasionalmente aparecem no lago (aliás, as focas vivem sendo acusadas de se passar por Nessie nas fotos de turistas). E 20% do DNA coletado foi categorizado como “unexplained”. Ou seja, muita calma nessa hora de sair assim descartando a existência da nossa querida Nessie. Se focas existem, nadam pelo lago e mesmo assim não foram detectadas pela pesquisa, então Nessie também pode ter passado batido, ou estar dentro dos 20% de material genético que não puderam ser identificados. Como dizem por aqui: a ausência de evidência não significa evidência de ausência. 😉

É possível que as pesquisas continuem inconclusivas, e parte do encanto de Nessie é justamente esse: não se pode ter certeza a menos que se esvazie o lago – algo que nunca será feito. Não foi desta vez que a ciência conseguiu destruir esta lenda tão antiga, e tão valiosa para a Escócia. Estima-se que cerca de 200.000 turistas do mundo inteiro visitam o Loch Ness todos os anos, na esperança de conseguir um selfie com nossa amada monstra.

Mas talvez o que ensinam para as crianças, e que meu filho aprendeu aos 4 anos, esteja certo: talvez Nessie seja tímida e prefira continuar se escondendo. Talvez ela seja muito esperta e contrate focas para despistar os turistas. Talvez ela tenha escapado da pesquisa de eDNA tanto quanto as lontras, os esturjões e os bagres (que também não foram detectados). Talvez ela só apareça para o Adrian Shine, no chá da tarde semanal em que eles conversam sobre os bons tempos (quando ele mergulhava em uma espécie de pequeno submarino para tentar encontrá-la), discutem sobre como continuar despistando os metidos a espertinhos, e riem de todos nós.

Anteriores

Fantasmas do Culzean Castle

Próximo

Singela lista de coisas que tem aos montes no Brasil mas que nunca vi aqui:

  1. Maurício Pereira

    Muito bom o seu texto Anelise! Bem completo, esclarecedor e baseado em fatos! Adorei!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Desenvolvido em WordPress & Tema por Anders Norén

You cannot copy content of this page