Em setembro passado, eu me tornei aluna da Universidade de Edimburgo, depois de ser aprovada na seleção para um doutorado em política e relações internacionais.
Fundada em 1582, a Universidade é quarta mais antiga da Escócia (perde para as de St Andrews, Glasgow, e Aberdeen) e a 6ª melhor da Europa. No Reino Unido, fica atrás somente das universidades de Oxford e Cambridge. Charles Darwin, David Hume, Peter Higgs, Arthur Conan Doyle, e Sir Walter Scott estudaram aqui, bem como 3 primeiros-ministros e 19 ganhadores do prêmio Nobel. Da Universidade de Edimburgo saíram descobertas e invenções como as da anestesia, do telefone, do dióxido de carbono, da fertilização in-vitro, e das vacinas do HPV e da Hepatite B.
A Universidade possui até um tartan próprio!
Então imaginem eu, um humilde fruto de Araranguá, sentada em um salão vitoriano enorme, em uma construção do século XVIII, no primeiro dia de orientações e pensando, incrédula, “O que é que eu estou fazendo aqui?” Eu nem tinha grandes esperanças de passar, fiz a seleção como um treino. Pensei que aplicaria todos os anos, pra ir treinando e aprimorando a proposta de pesquisa e que, daqui a uns 5 anos, talvez eu tivesse chance de passar. Mas foi assim, de primeira. Muita sorte. Eu olhava em volta, olhava pra todos os outros, com caras de altamente inteligentes e qualificados e pensava: “Nossa, eu devo enganar muito bem mesmo….”. E fiquei bem quieta pra ninguém descobrir que eu era uma farsa…
Aí o chefe do departamento de política e ciências sociais se apresentou e começou a falar sobre toda a grandiosidade da universidade e do departamento e, em seguida, disse: “Eu sei o que vocês estão pensando. Vocês estão se perguntando o que é que estão fazendo aqui, e eu posso apostar que a maioria de vocês se sente uma farsa.”
“Eis um clarividente”, pensei. Esse povo além de inteligente e qualificado também é médium. Vai ser impossível acompanhar!
Ele continuou: “Nós temos um problema muito sério aqui na pós-graduação do departamento, e da universidade em geral, com a chamada ‘Síndrome do Impostor’. Existe um medo geral de que, um dia, descubram que somos uma farsa, uns incompetentes que enganaram bem, e nos expulsem do programa. Mas eu quero que vocês saibam que eu estou aqui há mais de 15 anos e ainda não fui desmascarado, então não se preocupem que vocês também não serão.” Todos riram. E eu me dei conta que não estava sozinha nessa de me sentir uma farsa e, ainda, que caso me descobrissem mesmo, eu tinha uma síndrome pra culpar (“não, eu não sou uma impostora, eu só me deixei levar pela síndrome, sabe como é, mas é claro que eu mereço estar aqui!”). É bom ter argumentos na manga.
Durante toda aquela primeira semana, bateram muito na tecla da saúde mental. Eu ainda não sabia em que aulas eu teria que me matricular, quais seriam os horários, ou quando iria me encontrar com minhas orientadoras, mas já havia recebido todos os contatos de ajuda e terapias disponíveis na universidade, sabia onde ficavam e como funcionavam as aulas de yoga, meditação, tai-chi e mindfulness, e havia escutado centenas de conselhos de alunos veteranos: “Bebam vinho”, um disse. “Façam exercício físico”, outro disse. “Não fiquem todos os dias na biblioteca até às 11 da noite”, outra aconselhou. Olhei pra minha única colega de mesma idade, e que também era mãe, e pensamos juntas: “Quem nos dera!!! Se a gente conseguir visitar a biblioteca duas vezes por semana já vai ser uma grande vitória…”
Bateram tanto na tecla da saúde mental que isso virou piada entre nosso pequeno grupo. A impressão que a gente tinha era de que certamente estaríamos todos aos prantos dentro de alguns meses. Uma colega avisou: “aluguei um armário pra guardar os livros, vocês podem usar também. Coloquei uns lanchinhos, e estou pensando e colocar um roupão e chinelos, pra andar pelo departamento com eles quando eu tiver o meu melt-down (colapso nervoso). Um dia, vimos um cartaz anunciando um curso de “primeiros-socorros em saúde mental”. “O que seria isso? Sacudir a pessoa e gritar “Calma! Calma!?”, conjecturamos, brincando.
A gente fazia piada, mas sabia que essa aparente obssessão com o assunto indicava algo muito sério. Um colega levantou essa questão pro nosso coordenador: “Se os índices de problemas de saúde mental no programa são assim tão alarmantes, será que ao invés de apenas ficar alertando os alunos que isso pode acontecer vocês não deveriam encarar isso como um problema fundamental da instituição e focar nas causas de tudo isso?”. Ele concordou. Isso certamente não era um problema na época de Darwin.
Na sala de doutorandos, escutávamos histórias que nos faziam entender melhor essa preocupação da Universidade. Um percentual imenso de pessoas pedindo afastamento por stress e depressão. “Todo mundo pede. Vocês também vão acabar pedindo.”, uma veterana nos avisou. Ela nos contou sobre o aconselhamento/terapia, que é grátis para os alunos. No segundo ano dela, resolveu procurar essa ajuda e foi a uma sessão de avaliação. Passou uma hora inteira chorando. A terapeuta perguntou: “Você tem pensamentos suicidas?”. “Não”, ela respondeu. “Consegue fazer coisas do dia-a-dia, comer, tomar banho, dormir, estudar, mesmo que menos que antes?” “Sim”, ela respondeu, ainda soluçando. Ficou no fim da lista pra conseguir atendimentos regulares. A prioridade era praqueles que responderam às perguntas diferentemente, porque eles não dão conta de atender tantos alunos.
Tudo isso nos assustava, e com o tempo escutamos mais histórias de pessoas brilhantes que botaram tudo a perder por causa de saúde mental. Aparentemente, isso é muito comum. Mas eu não lembro dessa preocupação ou dessa discussão na UFSC, onde fiz meu mestrado e convivi de perto com doutorandos também. Quando havia, era exceção. Talvez o sol e as praias deixassem tudo mais leve?
“Eu não consigo ficar muito tempo seguido aqui. Preciso, a cada 3 ou 4 meses, ir embora da Escócia”, me contou um colega, texano. “É lindo aqui, e eu adoro, mas essas construções muito sombrias, esse clima, essa escuridão do inverno… tudo isso age de modo muito sutil: quando percebo, estou mal.”
Por sorte, ele tem bastante dinheiro, então intercala a estadia aqui com temporadas em lugares mais ensolarados e “coloridos”, como a Espanha, Portugal e Grécia. “Uns dias nesses lugares já me dão a energia que preciso pra voltar e conseguir render.” Ele não está sozinho nessa ideia. Muita gente faz o mesmo e dá essas escapadas. Outra colega, californiana, aconselhou “Vocês precisam comprar um lâmpada de sol. Não tem como ficar aqui sem isso, eu não vivo sem a minha.”
Talvez tenha sido a falta de uma lâmpada de sol que me fez chorar um dia inteiro depois de sofrer um “bullying acadêmico” (do tipo: “você não pode fazer essa pesquisa sem passar pelo menos seis meses em cada país”; “seus métodos são inviáveis”; e coisas assim, faladas de maneira bruta). Busquei apoio nas colegas. Havíamos, brincando, feito uma aposta pra ver quem seria a primeira a ter um melt-down. Mas não vesti o roupão e as pantufas. Minha amiga também não, quando saiu da reunião com a orientadora segurando o choro (que soltou conosco, depois). Nesse último ano, além de muito trabalho, o que mais encontrei na universidade foram lágrimas, desabafos e a sensação conjunta de que somos todos uns impostores. Aí entendemos aquele que foi um dos primeiros conselhos, para aliviar todo esse peso: “Bebam vinho!”.
Meu vinho favorito é caminhar pelo campus, admirando toda essa beleza histórica e pensando em todas as coisas incríveis que já aconteceram aqui:
O filme “One Day” – que é lindo! – tem várias cenas filmadas na Universidade e arredores:
A biblioteca central fica aberta 24 hs por dia, todos os dias do ano, e por muitos anos teve um gato de estimação, o Jordan:
Ele era tão famoso que tinha seu próprio cartão da biblioteca, uma página no facebook que relatava suas andanças e um livro com seus “pensamentos” publicado:
Jordan morreu em 2016, mas logo apareceram novos substitutos pela Biblioteca, apelidados de Library Cat 2 e Library Cat 3. Nenhum deles virou residente permanente ainda, apenas vão e vêm, divertindo os alunos.
Nas primeiras semanas, o coordenador estava explicando ao grupo todas as fases do PhD: “E no fim, quando estiver tudo pronto e vocês entregarem a versão final da tese, vocês ganham um pirulito.”
Pareceu piada mas é verdade. Começou há alguns anos, quando uma senhora que trabalha na secretaria que recebe essas teses ficou com pena dos alunos, que provavelmente chegavam para entregar seus trabalhos com olheiras imensas, aos trapos, e exauridos pelos anos de exaustão mental e pelo medo de serem descobertos como fraudes. Ela resolveu comprar pirulitos para entregar a eles e animá-los. Virou tradição – e um símbolo de vitória! A Universidade passou a fazer pirulitos personalizados para esse momento glorioso. Eu imagino alunos colocando fotos do pirulito em seus murais de estudo e vision boards. Quando chegam da biblioteca, às 11 da noite, e ao invés de vinho bebem o terceiro galão de café do dia, prontos pra enfrentar mais uma madrugada de revisão de literatura, eles olham a foto e pensam que tudo vale a pena. “No final, eu vou ganhar esse pirulito.” é o pensamento que os mantêm firmes e fortes nessa luta. As tradicionais fotos com toga são substituídas, nas redes sociais, por orgulhosas fotos com a tese e o pirulito.
É incrível fazer parte de uma instituição tão antiga e tão cheia de história. No primeiro dia de uma das minhas aulas, no Old College, o professor nos contou que aquele era o prédio antigo da Medicina, e que foi naquele salão em que estávamos, bem embaixo da grande clarabóia, que o corpo de Burke foi publicamente dissecado (contei essa história aqui nesse post).
Embora fosse uma curiosidade mórbida, ela ilustra um pouco o quanto é incrível respirar tanta história, imaginar como era estar naquele exato lugar, mas séculos antes, e sentir que caminhamos por cima das pegadas dos grandes homens – e mulheres! – que vieram antes.
As “Sete de Edimburgo” foram as primeiras mulheres matriculadas em uma universidade britânica. Em 1869, elas começaram a estudar medicina na Universidade de Edimburgo, embora sem garantias de que pudessem adquirir o diploma. A campanha pelo direito delas de se formarem foi imensa, e ganhou atenção nacional. Charles Darwin era um dos principais apoiadores.
Depois de muita luta, em 1894, mulheres receberam o direito de se formar, e em grande parte por causa do ativismo das Sete.
Passei pela placa em homenagem a elas um tempo atrás, durante uma de minhas caminhadas-vinho. Agradeci-lhes, mentalmente, pelo meu direito de estar aqui. Impostora ou não, é uma honra imensa poder usar esse tartan.
Gianandrea
Oi queridaaaa! Vc já faz parte da nossa vida!
Ameeeiiiii seu artigo Anelise! Estava com saudades e resolvi te mandar um alo diretamente. Parabéns pela sua admissão! Espero que ainda tenha tempo para nos enviar novidades aqui no blog,kkkk
Sucesso e muiiiiitas vitórias aí na universidade!
Super beijo
Gianandrea Wotfe
Anelise
Obrigada!!! Sim, o pior – esse primeiro ano – já passou. Agora não tenho mais tantas aulas e fica tudo mais tranquilo, vou seguir postando. Obrigada pela mensagem, fico muito feliz com esse retorno e carinho. Beijão!!
Adriana
Aiii, mais uma história fascinante, Anelise!!
Amo seus artigos e te desejo muito sucesso, sorte e aventuras!
Adriana
Anelise
Obrigada, querida!! É sempre nuito bom saber que os posts agradam. ❤
Camila Rossi
Olá! Acompanho sua página no Facebook e vi este post. Queria primeiro te parabenizar pelo doutorado e agradecer o post. Terminei o mestrado em Relações Internacionais ano passado, e o plano foi sempre seguir para o doutorado na Universidade de Edimburgo em Development. Mas essa síndrome do impostor e o medo do emocional me seguraram e ainda não me apliquei. Vim pra cá trabalhar, olhar a Universidade e criar coragem, quem sabe! Boa sorte nos seus estudos e muita força pra você! Beijos
Anelise
Oi Camila! Que legal! Aplica sim, já viu que é todo mundo impostor por lá, hahahaha!!! Se precisar de ajuda, conselhos, sobre orientadores, projeto e etcs, ou qualquer dúvida, estou às ordens, pode me escrever em vidanaescocia@gmail.com
Beijos!!
Taty
Ai Anelise, seu post me emocionou. Quando vi estava com os olhos cheios d’água. Talvez seja por também sofrer da síndrome do impostor e tentar me convencer todos os dias de que não sou uma, ou não estou sozinha nela. Talvez por ainda não ter tido coragem de ir passear por esse lugar tão encantador porque sei que terei uma crise de choro absurda ao pisar nessa universidade. Talvez por querer tanto fazer um curso na área de tradução aí, mas me sentir impostora demais para isso…
Anelise
Taty, vai!! Anda por lá sim, se anima e aplica pro curso! Já viu que é todo mundo impostor lá mesmo, hahahaha! É muito normal se sentir assim, mas a maioria não admite. Eu lembro de quando estava aplicando pro doutorado. Tinha que fazer uma modificações na proposta de pesquisa, e tinha que ser pro final da tarde, correndo, porque depois a minha futura-orientadora ia viajar e não poderia ler e comentar até a volta. O Pedro estava com 4 anos, de férias, só nós dois em casa. Eu estava nervosa com essas correções e mudanças que tinha que fazer, meu emocional não estava bom, e não conseguia me concentrar com ele me chamando a cada 5 minutos, querendo brincar, me sentia culpada. Combinei com uma amiga de levá-lo na casa dela pra ele brincar com outras crianças e eu poder ter duas ou três horas de concentração. Ele concordou, mas quando chegou lá teve uma crise de choro e não quis desgrudar de mim (acho que os filhos sentem quando a gente está nervosa). Não teve jeito de ele ficar. Voltamos pra casa, os dois chorando, e eu lembro de ter pensado que não ia conseguir fazer isso. Se não conseguia nem umas horinhas pra terminar a proposta, imagina todo o resto, e imagina fazer o curso?! Bateu aquele desamparo total em que a gente se sente incapaz de qualquer coisa. Depois que ele dormiu, tomei um café e, exausta, terminei a proposta. Enviei pra ela já perto da meia-noite, com mil pedidos de desculpas, mas envergonhada de dizer que não consegui terminar a tempo por causa do filho. Ela deu um jeito de ler e ficou tudo certo. Hoje eu não dou bola. Peço prazo a mais e digo que tenho filho pequeno, que moro longe, que as coisas são diferentes pra mim. Enfim, isso foi mais pra ilustrar que, embora a gente tenha a impressão de que está todo mundo estudando e se qualificando 12 horas por dia, todo mundo mais adiantado e em melhores condições que nós, a verdade é que está todo mundo descabelado e se achando em desvantagem por algum motivo. Todo mundo nesse barco de se achar menos capaz que os outros. Pelo pouco que te conheço já sei que você está acima da média e tem condições totais de passar. Não é tão difícil quanto a gente pensa. Se precisar de ajuda, conte comigo, dou a maior força pra te ver lá também!! E estamos nos devendo aquele café, né? Em setembro eu volto a circular por Edimburgo, aí marcamos e conversamos mais. Te dou dicas de como enganar o povo e entrar com tudo, hahahaha!!! Beijão!
Taty
Você não imagina o ânimo que a sua resposta me deu! Estamos mesmo, bom que setembro já vai ter passado toda a confusão dos festivais e fica mais tranquilo pra gente conseguir sentar e conversar. Beijos
Teresinha
Força aí Guria
Você não é uma farsa, mas sim uma mulher lutadora e extremamente inteligente.
Muito orgulho de você
Beijo
Talita Lemes
Aahhhhh Anelise que incrivel. Meu Deus eu fui indo com você e me sentindo no seu lugar. Imagina, se eu já me sinto nas nuvens no meu humilde college em Glasgow fico pensando em voce nesse PHD na fodastica Edinburgh University ( que por sinal foi meu sonho por muitos meses antes de eu mudar meu foco para teatro ). Ela não é a melhor opção em drama studies, senão seria minha total primeira opção! Maravilhoso, obrigada pelo texto 😀
Anelise
Obrigada!!!
maiara
Oi, Anelise! Sou novata e caí no teu blog não faço ideia de como! hehehe! Fiquei surpresa quando vi que era catarinense tbm e que já tinha passado pela UFSC. Eu defendi meu doutorado em Design há 3 semanas e passei por tudo que você descreveu. Acho que a ansiedade que o doutorado causa não é exclusividade de nenhum país, é universal! Mas vai com fé que tudo dá certo!
Estou na fase de revisão e logo vou ter meu merecido “pirulito”. Bem que isso poderia virar moda na UFSC também, adorei a ideia! hehehe
Abraço, parabéns e boa sorte! 😀
Anelise
Oi Maiara, que legal, obrigada por ler e comentar!! 🙂
Não é fácil mesmo, mas vamos que vamos, uma hora acaba. Parabéns pela reta final!!! Podiam ter algo equivalente ao pirulito em todas as universidades, né? Acho que esimula bastante, hehehehe. Beijos!!